A aldeia eterna
Oh rudes pedaços de montanha que escudais o meu destino ignoto por explorar!
Oh pedaço de terra que a lua beija sem tocar!
Oh névoa brilhante, fresca e formosa que me sussurra ao ouvido pelo acordar!
Num instante, toda a fome se transforma em vontade de sonhar!
Por lá, o sol alinhava-se todos os dias com o sino da capela, pontual como a panela da
D.Amélia ,suja á lareira, cozinhava o almoço!
No tempo em que a madeira queimava e que o fogo era toda a metafísica das conversas
loquazes entre a senhora e a família do vizinho que se juntava à casa pequena.
As cadeiras das assembleias domingueiras, geralmente cartadas, estão vazias. Árvores,
roseiras, todas elas secam, murcham pela falta de amor e tudo mirra pela falta de atenção
daqueles que agora passam absorvidos pela sedenta instrumentalização da vida que já não é
vivida, apenas partilhada vezes sem conta por desconhecidos anónimos que nunca se
chegarão a conhecer.
Ovelhinhas hoje, bem alinhadas nas ruas abstratamente existentes entre as margens da
solidão e da ilusória civilidade.
Lá em baixo, a macaca desenhada a giz já se apagou, a velhinha que dava a água às crianças
cheias de folia, já não lá está, os conselhos já não são ditos com a mesma voz, serão
porventura lembrados nos nossos sonhos. As gargalhadas das crianças, estridentes e alegres
também já não são ouvidas.
Na parreira que hoje paira nos ferros enferrujados na casa da D.Amélia restam os cinzeiros que
guardam a cinza da memória dos homens que já lá não estão, como cigarros apagados e
esquecidos…Mas porque haveriam de ser lembrados? não deve existir maior satisfação, para
esses homens, senão esquecer o que logicamente terá que ser esquecido, findado pelo
intervalo que a vida lhes deu.
Cheiro a água fresca nas minhas mãos que escorre pela mina dos segredos, parece-me querer
dizer que o tempo não terá tempo para escorrer o que já escorreu outrora, tido como segredo,
hoje desvendado, ternurosamente pelo seu maior confessor, o tempo. Esses, os segredos de
criança que hoje pouco importam, para a minha mente, corrompida pelos vícios
redondamente drogados dos homens hipocritamente bem vestidos.
Aqui, viveu-se a florescência rural das pessoas muito pobres, tão pobres que sem o saber
enriqueceram-me com pedaços de sentimentos oferecidos tão bondosamente que não haveria
forma de os recusar.
Para onde terão ido as crianças? Para onde terão ido os velhos da aldeia? Serão todos eles
almas perdidamente sós na noite velha?
Talvez consigam renascer um dia para os dias novos deste novo mundo que já não existe para
além destas linhas que escrevo, também elas na solidão extensível do meu corpo á cadeira de
madeira.
Aprecia!como tudo isto é inutilmente belo…como foi o que passou e que agora não é mais que
uma reminiscência vagamente presente.
Como a minha aldeia é tão pequena e tão vasta, de lá, um dia, vi o mundo á minha frente,
estava mesmo ali e sem perceber o perdi.
Foto de 1957, autor desconhecido, aldeia do pereiro, freguesia da Raiva.
Tiago Lopes
Email: tiagofal@hotmail.com
Jornal Paivense – Texto 100% autoria do autor