A recomendação de abstinência sexual aos católicos casados em segundas núpcias dividiu o país, líder europeu em divórcios e onde teólogos e religiosos se perguntam agora se a mensagem foi mal interpretada ou se, pelo contrário, a igreja do país vive alheia à sociedade.
O polémico conselho foi divulgado há 24 horas como uma das linhas “operativas” que o cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, dirigia aos religiosos para que saibam como aproximar os sacramentos aos divorciados.
Era um assunto ao qual se tinha referido o papa Francisco na exortação “Amoris Laetitia”, publicada em abril de 2016, e sobre o qual queria reflexionar Clemente, considerado socialmente como a máxima figura eclesiástica de Portugal. O resultado, longe de esclarecer eventuais dúvidas, causou espanto.
A julgamento de Clemente, os sacramentos nestes casos podem fornecer-se “em circunstâncias excecionais”, ainda que a igreja “não deve deixar de propor a vida em continência” aos casados em segundas núpcias, caso o seu primeiro casamento não tenha obtido a nulidade eclesiástica.
“Não é razoável“, afirma hoje taxativamente à Efe Anselmo Borges, sacerdote e professor de filosofia da Universidade de Coimbra, uma das vozes mais críticas neste debate.
“A igreja não se deve meter na vida íntima do casal. Depois, se efetivamente estão casados, é natural que tenham relações sexuais, faz parte do casal. Se um casal se forma, não é para viver como irmãos”, argumenta Borges, para quem a ideia da abstinência “contradiz a natureza das coisas”.
Este sacerdote e académico lamenta que a moral católica “continue muito centrada no sexo” e aponta que declarações deste tipo podem afastar as pessoas da igreja, pois, embora o cardeal de Lisboa apenas tenha poder jurídico sobre a sua diocese, socialmente é considerado o chefe eclesiástico do país.
Talvez por isso e para apagar o inesperado fogo causado por Clemente já falaram publicamente membros de outras diocese, como o padre Mário Tavares de Oliveira, assistente em Évora.
“D. Manuel é bispo de Lisboa e as suas orientações não são para a igreja em Portugalnem vinculam a outras diocese”, assevera hoje ao jornal “Público”, ideia com a qual coincide Miguel Abreu, membro da diocese de Viseu, no mesmo jornal: “É a sua opinião”.
A imprensa portuguesa tornou-se um fórum de discussão entre teólogos e religiosos que defendem o cardeal de Lisboa, cujas palavras terão sido, sustentam, interpretadas mal ou tiradas de contexto.
“A expressão usada talvez não tenha sido a mais feliz para ser entendida por pessoas com linguagem não eclesiástica”, indica nesse sentido o padre José Manuel Pereira de Almeida.
E matiza: “Há circunstâncias em que fará sentido propor (a abstinência sexual). Mas as pessoas decidem o que lhes parece mais adequado”.
Outros, como a doutora em teologia Teresa Toldy, investigadora na Universidade de Coimbra, veem nas palavras de Clemente “um alheamento completo em relação à vida dos casais”.
“É revelador de como se produz um discurso por parte de pessoas que, quando falam de casamento de maneira dura e rápida, não sabem do que estão a falar e correm o risco de fazer propostas ridículas”, afirma Toldy ao mesmo jornal.
A polémica levou o diretor do departamento de comunicação do Patriarcado, Nuno Rosário Fernandes, a pronunciar-se, sublinhando que é “errado dizer que é o patriarca quem propõe” o conselho de abstinência porque “já foi afirmado por João Paulo II no ‘Familiaris Consortio’”, uma exortação apostólica de 1981.
Portugal é o país europeu com maior proporção de divórcios: por cada cem casamentos que se realizam no país há setenta divórcios, segundo a base de dados estatísticos Pordata.