O financiamento colaborativo usado para suportar a greve dos enfermeiros pode ter um “efeito perverso” se os fundos forem provenientes de concorrentes das entidades empregadoras atingidas pelo protesto ou de organizações com interesses políticos na greve, alertam especialistas ouvidos pela Lusa.
A forma de financiamento da greve dos enfermeiros, através de ‘crowdfunding‘, que decorre há um mês, pode colocar questões de concorrência desleal e ser um sintoma de que os tradicionais fundos de greves já não se adequam ao novo perfil de paralisações, em relação ao qual o atual ordenamento jurídico laboral ainda não consegue dar resposta.
António Monteiro Fernandes, professor Instituto Universitário de Lisboa, alerta que “se terceiros, por exemplo, um partido político ou uma empresa concorrente, se aproveitam dessas greves, no sentido de promoverem a greve ou o seu prolongamento, como será o caso da participação no ‘crowdfunding’, isso implica a possibilidade de investigação da identidade dos contribuintes” participantes na recolha de fundos.
“Imagine-se que as empresas detentoras de hospitais e clínicas privados aderiam maciçamente ao ‘crowdfunding’. Haveria, sem dúvida, ilegalidade, mas não do lado da greve — do lado das empresas, pela prática de concorrência desleal“, afirma o professor do ISCTE.
“Em termos legais, a situação está bastante desprotegida” nota o professor, “e no que respeita à hipótese de concorrência desleal, o Código da Propriedade Industrial encarrega a ASAE de a fazer”, mas o que pode daí resultar é uma coima e, eventualmente, responsabilidade civil para a entidade infratora.
Também Marta Carvalho Esteves, advogada especializada em Direito do Trabalho, admite que poderá ocorrer “o efeito perverso de existirem outras entidades a financiar os trabalhadores grevistas como forma de obterem vantagens económicas, políticas, entre outras, com as greves de longa duração e com grande adesão”.
A especialista em Direito do Trabalho indica que “não é possível garantir que não existem interesses privados ou partidários envolvidos nas doações realizadas através de uma plataforma ‘crowdfunding’, uma vez que não será possível aceder a tal informação, podendo, então, ocorrer o efeito perverso do financiamento colaborativo”.
Também Pedro da Quitéria Faria, advogado da área de Direito Laboral, frisa que “não é absolutamente líquido e garantido que não existam interesses de terceiros privados ou partidários envolvidos em operações desta natureza”.
O especialista em Direito Laboral alerta para “a dimensão e complexidade que reveste a aplicação deste regime num movimento grevista”, no cenário de uma paralisação “financiada por terceiros privados que possam ter um interesse oculto, em que tais cirurgias sejam realizadas – dada a sua indiscutível necessidade – no sistema privado de saúde durante todo o período da greve”.
A ASAE será a entidade responsável pela fiscalização, instrução processual e aplicação de coimas e sanções acessórias da atividade de financiamento colaborativo através de donativo, conforme previsto no regime sancionatório aplicável.
A “uberização” do direito do trabalho
Os especialistas também consideram que a adoção do ‘crowdfunding’ para financiar a greve dos enfermeiros é sinal do advento do direito laboral tecnológico, sendo um sintoma de que os fundos de greve se tornaram insuficientes para o novo perfil de paralisações.
“Com o advento desta nova e criativa forma de financiamento de uma greve, é absolutamente cristalino que já estamos no âmbito do chamado direito laboral tecnológico, ou da “uberização” do direito do trabalho, na era das plataformas digitais“, considera Pedro da Quitéria Faria.
O especialista acredita que o movimento visível nos últimos anos é “uma verdadeira revolução no paradigma do direito laboral clássico, que é absolutamente irreversível”, e antecipa que o legislador terá que acompanhar com “total prudência” este movimento, uma vez que se levantam “questões altamente complexas e novas às quais o ordenamento jurídico laboral ainda não tem capacidade de previsão nem resposta”.
No mesmo sentido, António Monteiro Fernandes destaca que “as greves de hoje fogem em muitos aspetos à sua configuração tradicional”, existindo “greves intermitentes, articuladas, etc.”, cujo “mecanismo, para ser eficaz, requer paralisações longas, difíceis de manter por causa da perda dos salários”.
Para o professor do ISCTE, “não há fundos de greve, alimentados por uma parte das quotizações sindicais, que resistam a greves prolongadas” e “o ‘crowdfunding’ surge como uma solução que tem a vantagem de poder exprimir o grau de solidariedade do público com a greve”.
Também Marta Carvalho Esteves frisa que “uma greve de cerca de 40 dias, em cinco centros hospitalares, com milhares de enfermeiros a aderir à greve, será de difícil suporte financeiro, mesmo com as contribuições dos trabalhadores sindicalizados para o fundo de greve”.
Por isso, a especialista em Direito do Trabalho considera que o ‘crowdfunding’ funcionará “como uma forma de financiamento de greves que se prolongam no tempo, quando os fundos de greve se tornam insuficientes”, não sendo uma questão de estarem a cair em desuso, mas estarem “antes a revelar-se insuficientes para suportar financeiramente greves com muitos trabalhadores aderentes e prolongadas por um longo período”.
António Monteiro Fernandes admite que os fundos de greve não bastarão para suportar uma paralisação prolongada, não se tratando de desuso, mas, “nuns casos, de inviabilidade e, noutros, de insuficiência”.
Já para Pedro da Quitéria Faria, o ‘crowdfunding’ é um sintoma de que num futuro próximo “os fundos de greve poderão vir a ser condenados à sua quase total irrelevância, ou mesmo ao seu desaparecimento”.
Fonte: ZAP