Dez anos após a sua primeira entrevista que marcou os leitores do Jornal Paivense, Mónica Tavares regressa para uma conversa profunda e reveladora. Em 2015, partilhou connosco a sua experiência transformadora em Angola, os desafios e as recompensas de uma enfermeira dedicada. Hoje, Mónica revisita esse percurso, partilhando as aprendizagens, os novos desafios e as conquistas que a moldaram como mulher, profissional e, mais recentemente, como mãe. Nesta entrevista exclusiva, exploramos como os valores de cuidar, servir e a gratidão permaneceram intactos, mesmo com as intensas mudanças vividas ao longo de uma década. Prepare-se para uma história de resiliência, humanidade e paixão pela enfermagem, que demonstra como cada etapa da vida profissional e pessoal contribui para a construção de uma identidade única e inspiradora.
1.Mónica, passados dez anos desde a nossa última entrevista, o que a motivou a querer revisitar a sua história connosco?
Porque dez anos depois percebi que cada fase da minha vida profissional foi uma peça de um mesmo puzzle: o cuidar. Voltar a esta conversa é, de certa forma, uma forma de honrar o caminho percorrido. Angola marcou profundamente a minha identidade profissional e humana.
Naquela altura, a única opção para muitos profissionais de saúde que queriam exercer e crescer era emigrar — como tantos outros, procurei explorar novas condições de vida e de trabalho. Era o tempo de procurar horizontes, de sair da zona de conforto e descobrir o mundo, ou não fôssemos nós um povo de navegadores.
Hoje, depois de tantas experiências, especializações e desafios, sinto que vale a pena revisitar a história para mostrar que o percurso de uma enfermeira é feito de ciência, entrega, resiliência e paixão.
2.Naquela época, a sua vida em Angola era um tema central. Como descreveria a sua relação com Angola hoje, em comparação com a de dez anos atrás?
Hoje, Angola é uma memória viva e terna. Regressei a Portugal em 2017, com a sensação de dever cumprido e de ter deixado uma parte de mim naquele país. Em 2024 surgiu novamente a oportunidade de regressar e abraçar um novo projeto, mas, por motivos familiares, tive de recusar.
Angola ensinou-me a trabalhar com poucos recursos, mas com um enorme sentido de missão. Foi lá que percebi que o cuidar não depende das condições, mas da presença, da criatividade e da empatia. E embora a minha vida profissional hoje se desenrole em Portugal, essa escola de humanidade continua a guiar o meu modo de ser, no trabalho e na vida.

3. Mencionou que “muita coisa mudou — mas algumas coisas continuam intactas: o gosto por cuidar, a vontade de servir, a gratidão por todas as pessoas que encontrei no caminho.” Poderia detalhar como esses valores se manifestaram na sua vida e carreira ao longo desta década?
Esses valores são o alicerce do meu trabalho. Nos últimos dez anos especializei-me em Saúde Materna e Obstétrica, e tive o privilégio de acompanhar inúmeros partos — momentos que continuam a emocionar-me como se fosse o primeiro. Ser enfermeira especialista é um privilégio raro: é estar presente quando uma vida começa, quando uma mulher se descobre mãe e quando uma família se forma.
Muitas vezes ao falar de obstetrícia crê-se ser uma especialidade onde só há vida e alegria, mas nem sempre é assim. Há também perda, silêncio e despedidas. Na mesma sala onde se celebra a vida, por vezes também se chora. É uma área onde é preciso cuidar com humanidade, respeito e esperança, porque cada nascimento — ou ausência dele — marca profundamente quem o vive e quem o assiste.
A vontade de servir levou-me também a investir na formação e na gestão em saúde, concluindo uma pós-graduação nessa área. Senti que compreender a estrutura dos serviços é essencial para melhorar a qualidade dos cuidados. Hoje, equilibro o lado técnico, o humano e o estratégico, sempre com o mesmo propósito: cuidar melhor.
4. Quais foram as maiores aprendizagens e os desafios mais significativos que enfrentou nestes últimos dez anos? Houve algo que a surpreendeu particularmente?
O maior desafio foi conciliar o crescimento pessoal com o profissional. O ritmo hospitalar é exigente, sobretudo quando trabalhamos em contextos tão diferentes como Angola, durante uma pandemia, ou num grande hospital como a ULS São João. Aprendi que a enfermagem é uma profissão de entrega total — mas que essa entrega tem de ser equilibrada, para não nos perdermos de nós próprios.
A nível pessoal, aprendi o valor da resiliência, da humildade e da empatia. Os últimos dez anos mostraram-me que não há dois dias iguais, nem dois doentes iguais. Cada pessoa traz consigo uma história, um medo, uma esperança — e é esse olhar individualizado que faz toda a diferença no cuidar.
Surpreendeu-me perceber que, apesar da dureza e da exigência da profissão, continuo a emocionar-me com os mesmos gestos simples: o olhar grato de uma mãe, a mão que se aperta em silêncio, o choro de um recém-nascido, ou a força de quem recomeça depois da perda.
E, talvez mais do que tudo, compreendi que ser enfermeira é aprender constantemente — sobre o corpo humano, sobre a vida e sobre nós mesmas. É uma profissão que exige ciência, técnica e responsabilidade, mas também uma imensa capacidade de sentir.
5.Na entrevista anterior, falou sobre as dificuldades e as recompensas de trabalhar em saúde em Angola. Como evoluiu a sua perspetiva sobre o impacto que consegue ter e a diferença que faz?
Hoje vejo o impacto de forma mais ampla. Em Angola, o impacto era imediato e visível. Em Portugal, ele é mais silencioso, mas igualmente transformador. A diferença que fazemos mede-se em confiança, em partilhas, em pequenos gestos que ficam na memória de quem cuidamos.
Enquanto especialista, acredito que o impacto nasce do rigor técnico aliado à empatia. Cada parto, cada acompanhamento pré ou pós-natal, cada mulher que consegue amamentar eficazmente é uma oportunidade para humanizar a experiência do casal e da família.
6.Se pudesse dar um conselho à Mónica de 2015, com base na sua experiência atual, qual seria?
Diria: “Sê paciente contigo mesma.”
Nem tudo acontece ao ritmo que desejamos, mas tudo acontece no tempo certo. Na altura, eu queria fazer tudo ao mesmo tempo — crescer, aprender, conquistar, cuidar, mudar o mundo. Com o tempo percebi que o verdadeiro crescimento não acontece na pressa, mas na consistência. Cada etapa tem o seu propósito, e cada desafio traz uma lição que só se entende mais tarde.
Diria também para nunca esquecer que a ciência e a sensibilidade podem — e devem — coexistir. Que é possível ser uma profissional exigente, rigorosa e competente, sem perder a ternura, o olhar humano e a escuta ativa.
Ser enfermeira é muito mais do que dominar técnicas: é compreender emoções, é estar presente mesmo quando o silêncio pesa. É ter coragem para cuidar nos momentos bons e também nos mais difíceis.
E, acima de tudo, diria àquela Mónica para confiar na segurança que o rigor técnico, o conhecimento científico e a responsabilidade profissional — frutos da formação e da experiência — lhe conferem. Porque é essa base sólida que nos permite cuidar com confiança, autonomia e humanidade.
Hoje sei que a força de uma enfermeira não está em nunca falhar, mas em continuar a cuidar mesmo quando o coração também sente. E essa é talvez a maior aprendizagem de todas.

7.Houve algum momento marcante ou experiência que se destacou para si nesta última década e que gostaria de partilhar?
Há muitos, mas destaco cada nascimento em que estive presente como se fosse o primeiro. Nenhum parto é igual, e cada um carrega uma história, uma luta, uma emoção diferente. É um privilégio indescritível assistir ao início da vida — ver a força de uma mulher transformar-se em amor palpável, segurar o bebé e entrega-lo à mãe e dar-lhe a oportunidade de cortar o cordão que foi vida e conexão durante 9 meses.
Mas talvez o momento mais transformador tenha sido estar do outro lado — o lado da paciente. Ser mãe e viver o parto na pele, com tudo o que ele representa de vulnerabilidade, coragem e entrega, mudou completamente a minha forma de cuidar. Perceber o que se sente, o que se teme e o que se espera naquele instante trouxe-me uma empatia e uma sensibilidade que nenhuma formação ensina. Viver esse momento fez-me compreender, de uma forma ainda mais profunda, o verdadeiro significado do cuidar.
8.Como concilia a sua vida pessoal e profissional hoje? Houve mudanças significativas nesse equilíbrio?
Hoje o equilíbrio é mais consciente. Percebi que para cuidar bem dos outros é preciso cuidar também de nós.
Quando estava em Angola, quase não havia espaço para a vida pessoal — o tempo era absorvido pelo trabalho, pelas necessidades das pessoas e pelas longas horas de serviço. A minha ligação à família resumia-se, muitas vezes, a uma videochamada sem vídeo, ou até sem som, porque há dez anos a internet não era o que é hoje, e África continua a enfrentar desigualdades nos recursos tecnológicos.
Foi um período de enorme dedicação, mas também de solidão e introspeção. Aprendi o valor da presença e da comunicação, mesmo quando as condições não o permitiam plenamente.
Hoje, vivo de forma mais equilibrada. Organizo a minha vida profissional com mais estratégia, valorizando o tempo e a qualidade da presença — tanto no trabalho como em casa. A maternidade ensinou-me a reconhecer limites, a desacelerar e a perceber que cuidar de mim é também uma forma de cuidar melhor dos outros.
9. O que a Mónica Tavares de hoje diria à Mónica Tavares que se aventurava em Angola há dez anos?
Diria: “Não tenhas medo de crescer.”
Aquela Mónica era destemida, idealista e acreditava profundamente na força do cuidar. Essa essência manteve-se, mas hoje há mais maturidade, mais conhecimento e um entendimento profundo de que ser enfermeira é uma vocação, não apenas uma profissão.
10.Quais são os seus planos e aspirações para o futuro? Há novos projetos ou paixões que gostaria de explorar?
O futuro, para mim, passa por continuar a crescer — como profissional e como pessoa. Vou continuar a investir na formação contínua em saúde, na investigação aplicada à prática clínica e em projetos que unam ciência e humanização. Pretendo consolidar o projeto “Pele a Pele”, expandindo-o para incluir o apoio à parentalidade, à amamentação e à saúde mental perinatal, bem como a formação de profissionais nesta área.
Paralelamente, alimento o sonho de criar um espaço multidisciplinar — um lugar onde o cuidar se expresse em várias formas: clínica, educativa e emocional. Um espaço para famílias, mas também para formar profissionais que queiram aprender, partilhar e crescer.
O futuro será sempre sobre cuidar — mas de forma cada vez mais consciente, integrada e profundamente humana.



Agradecimento
Quero deixar um sincero agradecimento ao Paivense por ter publicado a minha entrevista.
É muito especial poder recordar este momento e revisitar uma parte importante do meu percurso profissional e pessoal.
As palavras de ontem continuam a refletir o mesmo propósito: cuidar, inspirar e transformar através da maternidade e da enfermagem.
Obrigada por me permitirem reviver esta memória com tanto carinho.
Com gratidão,
Mónica Tavares