O coronavírus foi detectado em morcegos, mas a forma como foi transmitido aos humanos continua a ser um mistério. E esse “elo perdido” pode nunca ser desvendado.
Os EUA têm insistido na ideia de que o coronavírus teve origem num laboratório em Wuhan, na China, mas a Organização Mundial de Saúde (OMS) insiste que teve uma “origem natural”. Mas cientistas alertam que pode nunca se vir a saber com certeza como é que a primeira pessoa foi infectada.
A teoria mais disseminada é de que um animal hospedeiro do vírus foi vendido no mercado de animais selvagens de Wuhan, onde se acredita que começou o surto.
É sabido que o comércio de animais selvagens pode ser uma fonte de transmissão entre espécies, mas no mercado de Wuhan não foi encontrado nenhum animal com o coronavírus no seu organismo.
“O cluster inicial de infecções foi associado ao mercado – isso é uma prova circunstancial”, repara em declarações à BBC o professor James Wood da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Mas “a infecção pode ter vindo de outro lado e só, por acaso, ter-se espalhado em torno de pessoas de lá”, aponta.
Todavia, Wood admite que, “como é um vírus animal, a associação ao mercado é altamente sugestiva”.
“Misturar grandes quantidades de espécies sob fracas condições de higiene e de bem-estar, e espécies que, normalmente, não andariam próximas, dá oportunidade aos patogénos para saltarem de espécie em espécie“, avalia, por seu lado, Andrew Cunningham da Sociedade Zoológica de Londres, também em declarações à BBC.
Há um historial de vírus que passaram para os humanos através de uma espécie intermediária, como atesta Wood. O SARS original, que teve origem em morcegos, “foi transmitido para a população humana via uma epidemia em civetas de palmeira [uma espécie de pequeno mamífero que existe no Sudoeste asiático e que também é conhecido por musango] que estavam a ser comercializadas pelo sul da China para serem comidas”, salienta o professor de Cambridge.
“Isso foi muito importante de saber porque houve uma epidemia nas próprias civetas de palmeira que tiveram de ser controladas para travar um processo em curso de transbordamento para os seres humanos”, acrescenta Wood.
As pistas dos cientistas chegaram a apontar os visons, os furões e até as tartarugas como hospedeiros do SARS antes de este passar para os humanos. Vírus semelhantes foram encontrados também em pangolins, mas nenhuma destas espécies terá ligações ao surto actual.
“Estávamos à espera que algo como isto acontecesse há algum tempo”, aponta Cunningham, lembrando que o coronavírus que provoca a Covid-19 nem sequer é o primeiro vírus a ter origem em morcegos selvagens – aconteceu o mesmo com o Ébola, a raiva e o SARS.
“Estas doenças estão a surgir mais frequentemente, em anos recentes, como resultado da invasão humana do habitat selvagem e do aumento do contacto e do uso de animais selvagens pelas pessoas”, salienta Cunningham.
Em 2017, a virologista chinesa Shi Zhengli, directora adjunta de um laboratório de pesquisa de Wuhan e conhecida como “Batwoman” (Mulher Morcego), conseguiu encontrar um vasto conjunto de coronavírus associados ao SARS em morcegos de uma única gruta na China.
Foi também Shi Zhengli, juntamente com a sua equipa no laboratório de Wuhan, que conseguiu determinar a primeira sequência genética do novo coronavírus, concluindo que era idêntico em 96% a um dos que tinha detectado em morcegos numa gruta.
O relatório dessa pesquisa, que foi divulgado em Fevereiro pela Nature, aponta que, mais uma vez, os morcegos foram a origem do vírus que provoca a Covid-19. Mas não é tão claro que os humanos tenham sido directamente infectados por estes animais.
O processo que leva um vírus a infectar um humano passa pela capacidade de “desbloquear” as suas células para se poder replicar . “No caso do Sars-CoV-2, a chave é uma proteína do vírus chamada Spike e o bloqueio principal para entrar na célula é um receptor chamado ACE2″, refere à BBC o virologista David Robertson da Universidade de Glasgow, na Escócia.
“O coronavírus não é apenas capaz de caber nesse bloqueio ACE2”, mas também consegue fazê-lo “muitas mais vezes e melhor do que o Sars-1“, destaca Robertson. Esse encaixe perfeito pode ajudar a explicar a facilidade de transmissão da Covid-19.
Cientistas suspeitam que o vírus pode ter andado por entre os humanos durante semanas ou mesmo meses, manifestando-se apenas com sintomas leves, antes de provocar infecções mais graves.
“Pode ter havido mini-surtos, mas os vírus ou queimaram ou mantiveram a transmissão de baixo nível antes de causarem estragos”, explica à Scientific American o virologista Ralph Baric da Universidade da Carolina do Norte.
Mas no fim de contas, subsistem mais dúvidas do que certezas. “O surto de Wuhan é um alerta”, avisa Shi Zhengli através da Scientific American, destacando que descobrimos apenas “a ponta do icebergue”.
“Os coronavírus nascidos de morcegos vão causar mais surtos. Temos que os encontrar antes que nos encontrem a nós”, sublinha Shi Zhengli.