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O ex-Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva
No segundo volume de memórias sobre os anos passados no Palácio de Belém, Cavaco Silva revela os bastidores da formação do Governo de “geringonça”. Quinta-feira e outros dias será apresentado na quarta-feira, em Lisboa, pela presidente da Fundação Champalimaud, Leonor Beleza.
Uma das passagens do livro Quinta-feira e outros dias, assinado pelo ex-Presidente da República, é reservada a António Costa, que Cavaco Silva caracteriza como “um homem simpático e bem-disposto, de sorriso fácil”, “um hábil profissional da política, um artista da arte de nunca dizer não aos pedidos que lhe eram apresentados”.
Segundo Aníbal Cavaco Silva, a mestria com que o primeiro-ministro gere a conjuntura política e “empurra para a frente” os problemas da economia convenceram-no há dois anos de que Costa completaria a legislatura.
“Poucos meses depois de terminar o meu mandato, ganhei a convicção de que o primeiro-ministro, com a cumplicidade do PCP e do BE, era mestre em gerir a conjuntura política, em capitalizar a aparência de ‘paz social’ e em empurrar para a frente os problemas de fundo da economia portuguesa: a não ser que algo de muito extraordinário acontecesse, o seu Governo completaria a legislatura”, escreve Cavaco Silva.
“Na sexta-feira, 9 de outubro de 2015, fiquei convicto de que António Costa estava a negociar com o PCP e o BE a formação de um Governo por ele presidido”, refere o antigo chefe de Estado, revelando ainda que três dias depois das eleições legislativas Jerónimo de Sousa entregou a António Costa um documento com nove pontos que serviria de base para um novo Governo.
Além disso, manifestou ainda a total disponibilidade do PCP para um acordo de incidência parlamentar ou de divisão de lugares no executivo.
Nas semanas que se seguiram, multiplicaram-se os encontros em Belém, com Passos Coelho, na altura líder do PSD, a propor ao PS que integrasse um executivo de coligação PSD/PS/CDS-PP. Mas o consenso nunca foi alcançado e Cavaco Silva deu posse ao governo minoritário liderado por Passos, que cairia em 10 de novembro, depois do chumbo do programa do Governo no parlamento.
Nesse mesmo dia, Costa assinou com os líderes do PCP, BE e Os Verdes, os “partidos da esquerda radical”, três documentos bilaterais para a viabilização de um Governo do PS. Mais tarde, a 24 de novembro, Cavaco Silva comunicou ao secretário-geral socialista que iria indicá-lo para primeiro-ministro.
“No final da reunião, com ar satisfeito e descontraído, António Costa disse que se sentia honrado por receber a incumbência de formar Governo. Tinha conseguido o seu objetivo”, escreve Cavaco Silva.
A “inexperiência de Passos Coelho”
O segundo volume das memórias de Cavaco é dedicado aos bastidores da formação do governo PSD/CDS e logo com a confissão do ex-Presidente de que chegou a temer que Passos Coelho “não estivesse bem ciente da gravidade da situação económica portuguesa e das dificuldades que o esperavam”, quando percebeu as renitências do recém-eleito primeiro-ministro em abrir espaços de diálogo com o PS.
Conforme avança o Observador, logo nos primeiros encontros Cavaco traçou um caderno de encargos a Passos, com temas desde o Programa de Assistência Financeira até à dimensão do futuro executivo.
Após as negociações, Cavaco aceitou o acordo de governo estabelecido entre Passos e Portas, mas deixou um importante aviso. A relação de confiança entre os dois era “fundamental para o sucesso da coligação” e deveria ser mantida.
Cavaco sentiu as dificuldades de Passos na hora de formar governo. Apesar de não se opor a nenhum dos nomes que constavam na lista de ministros, percebeu ali, naquele momento, a inexperiência de Passos Coelho.
“Ao longo do processo de formação do executivo, terá ficado patente a falta de experiência governativa, algo de que se apercebeu José Sócrates, primeiro-ministro ainda em funções”. Foi por esse motivo que Cavaco se alongou “nos comentários e opiniões sobre a composição do Governo com a intenção de o ajudar”.
Demissão de Portas
A “demissão irrevogável” de Paulo Portas, em julho de 2013, do governo PSD/CDS-PP, foi incompreensível e “absolutamente inaceitável” e teve como propósito destruir a credibilidade da ministra das Finanças, revela o ex-Presidente da República. “Manifestei a minha total estupefação perante o que acabara de ouvir. Paulo Portas não me dera qualquer palavra, uma atitude inaceitável”, confessa Cavaco.
Classificando a tarde do dia 2 de julho de 2013 como “difícil de esquecer”, Cavaco Silva relata a forma como foi informado pelo então primeiro-ministro, Passos Coelho, por telefone da demissão de Paulo Portas da pasta dos Negócios Estrangeiros, a pouco mais de uma hora da tomada de posse de Maria Luís Albuquerque como ministra das Finanças.
Para o chefe de Estado a decisão “incompreensível”, “absurda” e “absolutamente inaceitável” de Paulo Portas “visava, propositadamente, destruir a credibilidade da nova titular da pasta” das Finanças, que ia suceder a Vítor Gaspar, que pedira em maio para sair do Governo.
“Decidi enviar-lhe um lacónico SMS: ‘Não consigo compreender a sua carta. Está consciente das graves consequências para PORTUGAL?’”, conta Cavaco Silva, que contrapõe a atitude de “infantilidade pouco patriótica” de Paulo Portas, com “a serenidade, sentido de Estado e determinação” de Passos Coelho, que recusou demitir-se.
Seguiram-se dias de intensos contactos, nomeadamente com o então secretário-geral do PS, António José Seguro, a quem Cavaco Silva questionou sobre a hipótese de formar um Governo com a participação de PSD e CDS-PP. Seguro, diz o ex-Presidente da República, comprometeu-se a estudar a proposta.
Com o país “mergulhado numa grave crise política”, Cavaco Silva propõe a Passos Coelho um “Compromisso de Salvação Nacional” entre PSD, PS e CDS-PP, que deveriam acordar o timing mais adequado para a realização de eleições antecipadas, a aprovação de medidas para o regresso de Portugal aos mercados e um acordo de médio prazo dos três partidos ao Governo que saísse do ato eleitoral para assegurar o futuro da governabilidade.
Mas, enquanto decorria esta conversa entre Cavaco Silva e Passos Coelho, o primeiro-ministro recebeu um sms de Paulo Portas que estaria “aberto a encontrar uma solução para a crise”.
Paulo Portas, depois de refletir, comunicou a Passos Coelho que “aceitava tudo”: aceitava permanecer no Governo e ser vice-primeiro-ministro. Apenas não queria assumir a pasta da Economia, que ficaria para Pires de Lima. O então Presidente da República decidiu não emitir “qualquer opinião”, remetendo a sua posição para o fim das audiências que já tinha marcado com os partidos.
Entretanto, Paulo Portas pediu para ser recebido por Cavaco Silva, altura em que reconheceu a “falha grave” cometida ao não ter informado o chefe de Estado do pedido de demissão, recordando que o CDS-PP sempre discordou da substituição de Vítor Gaspar por Maria Luís Albuquerque e que, por isso, reagira “em desespero de causa”. Um “ato de contrição” que Cavaco Silva admite ter sido “bem encenado”.
Nos dias seguintes, iniciaram-se as negociações entre PSD, PS e CDS-PP para o “Compromisso de Salvação Nacional”, que viriam a ser interrompidas pelo PS, com Cavaco Silva a acusar António José Seguro de falta de lealdade.
Na tarde de 19 de julho esteve reunido com o líder socialista e pediu um último esforço de convergência. À saída António José Seguro terá dito que não acreditava ser possível chegar a um entendimento. “Não voltou a falar-me e, às 20:00, viria a anunciar publicamente a rutura das negociações. Não foi leal da sua parte”, escreve Cavaco Silva, responsabilizando o PS pelo fracasso do Compromisso de Salvação Nacional.
“Foi, em minha opinião, o seu maior erro político. Perdera a oportunidade de concretizar o sonho de ser primeiro-ministro de Portugal. Os ‘socráticos’ e o presidente da Câmara de Lisboa foram corroendo e desacreditando a sua liderança como secretário-geral do PS”, refere, considerando que apesar de “simpático e correto”, António José Seguro revelou-se “inseguro, medroso e sem capacidade de liderança” e seria “um primeiro-ministro fraco”.
Goradas as possibilidades da construção do Compromisso de Salvação Nacional, Cavaco Silva daria, alguns dias depois, posse a Paulo Portas como vice-primeiro-ministro, numa remodelação governamental que abrangeu ainda as pastas da Economia, Negócios Estrangeiros, Ambiente, Agricultura e Segurança Social.
“Não tendo sido possível alcançar um Compromisso de Salvação Nacional, a melhor solução governativa era a continuação em funções do Governo de coligação PSD/CDS-PP, com garantias reforçadas de coesão e solidez até ao final da legislatura”, conclui.
Fonte: ZAP