Já tivemos provas vindas de profissionais que depois de passarem por um sufoco, pelo trauma de quase perder a vida, recuaram e tiveram de assumir publicamente o medo de enfrentar a morte de frente.
É natural ter medo, mas existiram grandes campeões arrojados e determinados a vencer acima de qualquer coisa, que nos deixaram com saudades de suas vitórias após acidentes que fazem parte da vida do esporte, como Senna e Pepê.
Vou contar uma história que presenciei nos anos 80 no Hawaii. Amanheceu como naqueles dias perfeitos, sem vento e com previsão de swell entrando durante o dia, isso quer dizer que você pode estar dentro d’água com 4 pés de onda e em duas séries o mar passar pra 12 pés.
As 5h30, depois de um chá de ginseng, segui de carro até Pipeline. O mar estava com séries de 10 pés e Banzai já com umas 15 cabeças na água. Observei algumas séries e voltei pra casa para o breakfast e para resolver onde iria cair.
Resolvi surfar em Jocko’s, uma esquerda que quando quebra Pipe, funciona com altas ondas. Nesse dia tinha 6 a 8 pés. Depois da caída resolvi voltar a Pipeline, agora com sol, 10h da manhã, vários fotógrafos na areia e o espetáculo acontecendo.
Pra checar quem estava na água peguei meu binóculo e quando entrou a série, um maluco que estava sentado outside de Banzai remou feito um alucinado atrás do pico.
Pensei comigo: “Esse cara vai morrer…” Ele dropou, colocou pra dentro da maior da série do dia que havia entrado torta na bancada e sumiu. A onda fechou com ele lá dentro e a praia fez aquele sonoro “HOOOO”.
Continuei atento para ver se ele subia. Depois de uns 2 minutos aparece um pedaço de prancha na areia e logo atrás o surfista agarrado a uma rabeta com a cordinha ainda amarrada no pé.
Quando consegui focar o binóculo tive uma grande surpresa: era o Pepê, o nosso amigo campeão de vôo livre e surf, Pepê Lopes. Gritei pra ele “Fala Pepê”. Ele disse “Já é a terceira prancha que quebro hoje, o Bil Barnifield está louco comigo! Vou buscar outra, o mar está alucinante!”.
Contei essa história pra tentar ilustrar como se deve enfrentar os desafios e como saber até onde vai o nosso limite. Até onde podemos chegar com segurança? Na verdade quem dropa uma onda em cima de uma bancada rasa de coral ou põe pra dentro de um tubo, sabe que tem a chance de se machucar feio ou nunca mais sair e voltar vivo pra casa.
Quando conseguimos vencer o medo é porque estamos muito bem preparados e confiantes pra realizar aquela aventura. Acidentes acontecem como o que matou Pepê, mas se ele não fosse arrojado e destemido ainda estaria entre nós, mas talvez não tivesse chegado ao topo do mundo como campeão mundial.
Essas coisas não se explicam e nem devem ser investigadas, fazem parte do milagre da vida. Existem outras situações em que o destino nos coloca, como quando eu estava na ilha de Kauai, na praia de Hanaley Bay, uma direita perfeita que quebra numa baía que atura até 12 pés.
Nesse dia eu estava com a minha 7’6” ( prancha pequena para aquele tamanho de mar) e achei que se caísse no inside poderia dropar algumas ondas.
A minha família estava na areia. Kenui com um ano ainda mamando no peito, Lanai com três e Kauai com seis anos junto da mãe e eu me despedi: “Vou surfar e já volto”. Entrei no mar pelo canal e quando estava chegando na metade do caminho, a corrente muito forte começou a me puxar pra fora.
Tentei dropar uma intermediária. A onda estava fechada, caí e a cordinha arrebentou na hora. Fiquei na zona de impacto, com a corrente me levando pra baixo do pico. Na hora eu pensei: “Chegou a minha hora!”.
Nadava forte, mas não saia do lugar. Estava cansando, lutando pela minha vida, quando do nada apareceu um havaiano de jet sky e me resgatou, me levou até minha prancha e disse: “Cuidado garoto, não é sempre que estou por aqui”.
Na verdade em Hanaley era realmente raro naquela época aparecer algum jet sky, e nesse dia esse havaiano resolveu dar um passeio na baía. Quando voltei à praia e encontrei meus filhos ainda brincando de castelo na areia, pensei que nunca mais poderia ver essa cena.
Minha vida esteve por um fio. Eles estavam tão felizes brincando que nem notaram a minha presença, e eu também resolvi guardar aquele momento só comigo e não comentei nada. O destino tinha me pregado uma peça. Passei a dar mais valor ainda ao milagre de estar vivo e a acreditar cada vez mais no destino.
Dropar Jaws é o sonho de muitos surfistas ao redor do mundo. Com a chegada do jet sky essa aventura se tornou mais viável, perigosa, mas possível, até para aqueles que jamais imaginaram estar descendo uma montanha d’água com uma prancha presa aos pés. O que não é o meu caso, pois tenho vontade de ainda aos 60 anos dropar Jaws e fazer historia para os meus filhos e netos.
E saudável ter desafios, buscar o limite, te deixa mais vivo que outro mortal. “Quanto mais próximo da morte a gente está, mais vivo a gente fica”. Alguém já disse essa frase, acho… [risos]
Hoje em dia é cada vez mais fácil de ver pessoas com mais de 60 anos buscando seus limites, como a nadadora Diana Nyad de 61 anos, que está se preparando para vencer a distância entra Cuba e a Flórida, nadar por 60 horas no mar com tubarões, coisa que antigamente só se imaginava tal feito ser conseguido por um jovem.
Estar entre a vida e a morte e ser salvo é uma emoção necessária para a gente dar mais valor a vida, a saúde e a família! Já senti isso algumas vezes no Hawaii e também gravando cenas de perigo para o seriado ‘Armação Ilimitada’, mas essa é uma história que merece um capítulo só dela.
Vejam o que esse campeão mundial de windsurf faz em Jaws. Tenho certeza que vão entender melhor a relação entre medo, limite e prazer.
Aloha! Boas ondas na vida!
Kadu Moliterno – Ator brasileiro
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